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Direitos Humanos e a questão da universalidade – Parte 1

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Em se tratando de Direitos Humanos, logo se pensa na universalidade. Não a toa essa é a característica que demonstra o quão tais direitos podem ser abrangentes e plurais. Todavia muito se tem discutido, na atualidade, acerca do choque entre a ideia universal de direitos inatos ao ser humano e o aspecto cultural, religioso e estrutural dos muitos povos e tribos que compõe o globo.

Ao que se observa a ideia de Direito Humanos, advém de uma noção naturalista de mundo, ou mais propriamente essencialista, apreendendo cada indivíduo humano como portador de uma essência imanente de direitos. Direitos esses capacitadores e motores da individualidade e da convivência social harmoniosa.

Essa acepção, lança a ideia de que o pressuposto maior para possuir tais direitos, está no fato do sujeito ser considerado um ser humano. Por mais que tal constatação seja eivada de obviedades, a questão é de grande complexidade.

Como bem destaca Hannah Arendt em sua obra as origens do totalitarismo, em que descreve o contexto no qual dá-se ensejo a regimes totalitários, de segregação e de usurpação da dignidade humana, para ser sujeito de direito, antes de tudo é necessário que seja reconhecido como tal. Esse reconhecimento vem desde a esfera nuclear até a esfera estatal. Não basta pois, estar na condição de humano, é necessário ir além da questão propriamente anatômica, fisiológica e cognitiva, para ser humano, é necessário o reconhecimento, a significação e a valoração do alheio, isto é, do outro.1

Arendt, de maneira perspicaz, pondera que um indivíduo, não nasce com a humanidade, ele a adquire, ou não, é algo que é conferido pelo grupo, pela sociedade, pelo Estado.2 Claro, biologicamente falando, somos todos Sapiens, mas isso não basta para que tenhamos de pleno, o direito à vida, à liberdade, à propriedade, e sobretudo à dignidade. O simples fato de ser, não faz conceber um sujeito de direitos, faz-se necessário para isso, primeiro a ideia de direitos, e segundo, a ideia de que esses são atribuíveis aos indivíduos.

O ponto alto da discussão que Arendt coloca, e para isso ela apresenta o cenário em se concebeu o Nazismo, está na possibilidade de desumanização de um ser humano.3 Indo mais longe ainda, essa mesma perspectiva aplica-se claramente no contexto das grandes navegações e de todo o processo e projeto escravagista que esse momento proporcionou. Quando se olha para traz, no retrovisor da história, muitos foram os momentos de esvaziamento da humanidade do ser e do ser humano.

A ideia jusnatural de Direitos Humanos nessa linha, é enfraquecida, uma vez que, para compreendê-los é preciso um distanciamento da ótica do essencial e dirigir-se para o olhar significante do “homem” para com os demais seres e para mundo.

Percebendo os Direitos Humanos como fruto da linguagem, e essa ,como tradução da imaginação, das abstrações simbólicas a valorativas do ser humano, para que se possa estabelece-los como universais, é primordial que pensemos na alteridade.

Essa palavra, ainda muito conversada e abordada na filosofia e até mesmo no âmbito jurídico, em se tratando de Direito Internacional, pode ser resumida como a capacidade de identificar e reconhecer o outro, como sujeito ao mesmo tempo igual e diferente. É em síntese o saber olhar para o outro, e para o outro no mundo, e como que por reflexo, para si mesmo.

No artigo “O nascimento do direito à alteridade na cidade”,4 é possível verificar esse enxergar o outro, a partir da alteridade em Francisco de Vitória.

Francisco de Vitória, pensador e teólogo do séc. XVI, impactou o contexto de sua época, ao dimensionar e imputar sobre os indígenas que teve contato no mundo virgem de Pindorama, os mesmos direitos reservados ao povo do velho mundo. Ao se deparar com as civilizações do novo mundo percebeu similitudes comportamentais, organizacionais, estruturais e normativas, em relação aos seus conterrâneos, e passou a se perguntar o porquê de não considerar sobre esses, direitos como propriedade, liberdade e dignidade.

Observando o outro, Francisco de Vitória, conseguiu em seu pensamento convergir o aspecto humano e o valorativo, à medida que percebeu a humanidade no outro, o qual, por mais que pertencesse a uma  cultura alheia a sua, mantinha algo comum a sua apreensão de indivíduo, e de indivíduo inserido dentro de um contexto social. Por óbvio o fator humanos se fez crucial, mas o aspecto axiológico fundamentou a justificativa da universalidade de direitos.

Dando um salto no tempo, autor que sustenta a universalidade também sobre essas bases, mas mais centrado no aspecto cognoscível e valorativo, é Kant, o qual, mediante o que chamou de imperativo categórico, constrói e estabelece a ideia de que existem ações e direitos passíveis de universalização.

Tal autor, aponta que a racionalidade, sendo algo intrínseco ao indivíduo, é a régua e o instrumento canalizador para a praxis, e para a ação propriamente dita. A razão então, ou melhor dizendo o pensar humano voltado para o agir, deve levar em conta o outro, e por conseguinte a coletividade. A título de exemplo, a frase a “sua liberdade termina quando começa a do outro”, explicita adequadamente essa noção, uma vez que, o direito à liberdade só se dá em virtude do existir do outro e pelo o outro, por isso é universal.

Os Direito humanos nesse sentido são universais, não só pelo pressuposto de implicarem sobre seres humanos, mas principalmente por se concretizarem e terem validade pela interação entre seres humanos. Tais direitos, são, pela perspectiva kantiana, uma implicação ética preservada pela alteridade, pela empatia.

Um filme que elucida ainda mais o conceito aqui divagado é “Náufrago”. Nessa película, protagonizada por Tom Hanks, a humanidade se perfaz na interação e relação entre um homem e uma bola de vôlei, ou se você preferir, o Wilson.

Enquanto o náufrago mantinha-se isolado na Ilha, tentando sobreviver na medida de suas habilidades, não é possível se falar em direitos, tampouco ética, visto que nesse contexto o homem é o centro de sua existência, não existindo o “outro” para criar o choque, o autoconhecimento, o limite do ser. Isso muda quando surge Wilson, uma bola manchada de sangue.

Até mesmo uma bola foi passível de absorver direitos, haja vista que lhe foi dada humanidade, e é exatamente a humanidade que aqui estamos construindo, a simbólica.

Sob essa lógica, permite-se dizer que todos os indivíduos são passíveis de serem alcançados pelos direitos humanos, bastando, conquanto que seja superada os impasses culturais, os quais se perfazem na tradição, na religião, na linguagem, e na própria assimilação do que é um ser humano.

Joshua Greene, em seu livro intitulado “Tribos Morais – A tragédia da moralidade do senso comum”, afirma que as tribos, sob um mesmo território, foram capazes de superar as desavenças internas, e assim prosperar (Isso numa ótica estritamente ocidental).5 Porém, hoje, o mundo vivencia o que ele chama de tragédia da moralidade do senso comum, em que há uma guerra cultural a nível civilizatório. Em resposta a esse conflito e confronto, pautado na divergência de ideais de mundo, de prosperidade, e de crença, mencionado autor sugere a maximização da felicidade.

Utilizando-se da filosofia utilitarista, cunhada por Stuart Mil e Jeremy Betham, Greene tenta demonstrar que as tribos, os povos e as civilizações devem se voltar a cultivar o que promove a felicidade de todos, indiscriminadamente.

Os Direitos Humanos, tendo vista essa proposição, caminham com esse propósito, desde que implementados, e de maneira democrática.6 Por mais que existam países que vão na contramão desses direitos, haja vista a cultura em que foram sedimentados, o critério da universalidade se impõe enquanto promovedor da felicidade, do bem-estar, da qualidade de um vida livre e igualitária.

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Felipe Gomes Carvalho

 

Referências

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1. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 300-336.

2. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 300-336.

3. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 300-336.

4. REIS, Émilien Vilas Boas; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. O Nascimento do Direito à Alteridade na Cidade. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 14, n. 29, p. 55-79, mai./ago. 2017. Disponível em: . Acesso em: 13.10.2021

5. GREENE, Joshua. Tribos Morais: a tragédia da moralidade do senso comum. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.

6. FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Por uma bioética da biodiversidade. Revista Bioética y Derecho, núm. 27, enero 2013, p. 58-68

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