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Nós e o Direito Internacional Privado: proximidades cotidianas

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Em um mundo composto por redes,1 os temas cotidianos se moldaram em um novo contorno, a transnacionalidade. Conhecida também como internacionalização, esses termos remetem a assuntos interconectados entre si em escala global. No âmbito jurídico, o Direito Internacional Privado é uma das principais disciplinas que cria relacionamentos harmônicos entre um dos seus objetos e a perspectiva intercultural.

Dentre as concepções dos objetos de Direito Internacional Privado, destaca-se a vertente francesa que trata de quatro matérias: (i) nacionalidade; (ii) condição jurídica do estrangeiro;2 (iii) conflito das leis; (iv) conflito de jurisdições.3 A temática da nacionalidade trata das formas de aquisição (originária e derivada), perda, reaquisição, dupla nacionalidade e apatridia. A condição jurídica dos migrantes e people of concern (PoCs)4 se refere aos direitos de mobilidade internacional e suas consequências no âmbito da saúde, da economia, da educação, do trabalho e da alimentação, por exemplo. Portanto, estes dois primeiros eixos cuidam das pessoas no Direito Internacional Privado.

Por sua vez, os conflitos entre leis não coincidentes de dois ou mais países define qual ordenamento jurídico será aplicado. Para tanto, analisam os tipos de normas (indiretas,5 diretas,6 qualificadoras,7 unilaterais,8 bilaterais9 e justapostas),10 a intemporalidade,11 as regras de conexão12 e os princípios do Direito Internacional Privado. Por fim, o conflito entre jurisdições de dois ou mais Estados determina qual deles é competente para julgar o caso13 e, por conseguinte, quais outros países envolvidos são aptos a reconhecer e executar a sentença estrangeira. Com isso, essa última matéria é conhecida como Direito Processual Civil Internacional.

Além destes eixos, o Direito Internacional Privado também cuida dos contratos internacionais e da responsabilidade civil extracontratual. Em ambos os casos, a análise deverá ser realizada em sua individualidade. Na situação contratual, devido à relação jurídica unilateral ou bilateral preexistente nos moldes conferidos em acordo escrito ou verbal. Na hipótese extracontratual, em razão de inadimplemento preexistente no âmbito normativo.

Com base nos objetos descritos, verifica-se que o Direito Internacional Privado está presente no cotidiano de todos. Para os estudiosos da área, ocorre de maneira mais formal por meio de leis,14 doutrinas,15 jurisprudência, tratados16 e convenções.17 Para os demais, acontece através do relacionamento humano com contorno social e, por vezes, jurídico. Por exemplo, com migrantes e PoCs; no contato com a tecnologia e alimentos vindos e/ou com receitas originárias de outros países e; no impacto que outras moedas causam em produtos nacionais. Além deles, por meio de chamadas telefônicas; da possibilidade de conhecer a previsão do tempo do destino antes de viajar; da atualização de notícias ao redor do mundo; da variedade de frutas independente da época do ano; da possibilidade de comprar produtos e alimentos importados; do trânsito de pessoas entre países; das moedas em comum entre países como forma de facilitar transações financeiras naquele bloco econômico.18

Diferente do que se passa no imaginário da maioria das pessoas que não possuem intimidade com a disciplina, ela pode cruzar a vida de qualquer ser humano19 como nós, ainda que esta pessoa nunca tenha saído de seu país de origem. Portanto, o Direito Internacional Privado está presente, cuida e facilita o cotidiano de todos ao mesmo tempo que é um dos ramos de estudo de direitos domésticos, os quais estão em constante diálogo uns com os outros, a fim de compreender qual o Tribunal competente para julgar o conflito, qual a norma processual e material deve ser aplicada e se a matéria discutida é reconhecida no local de julgamento. Em suma, trata-se de uma interlocução harmônica transnacional diária entre mais de um sistema jurídico doméstico.

Na atualidade, o Direito Internacional Privado tem interagido com diversos temas, como fronteiras, tecnologia, direito familiar, cooperação jurídica internacional, arbitragem internacional e “turismo reprodutivo”. Esta coluna pretende trabalhar as linguagens e os objetos deste ramo do direito, principalmente em questões de fronteiras e transnacionalidades, como é o caso dos migrantes, PoCs, (re)integração familiar e passaporte da vacina. Além disso, a coluna tem, também, como principal objetivo aproximar o leitor – seja um estudioso da área ou não – de suas matérias.

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Márcia Carolina Santos Trivellato

 

Referências

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1. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999; TRIVELLATO, Márcia Carolina Santos. Complexo de refugiados em Dadaab: estado de exceção em caráter permanente?. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2020, p. 126. As redes não são só virtuais, mas também físicas que conectam migrantes por meio do auxílio de como diminuir fronteiras entre cidades, estados e países. Por exemplo, a rede de campos de refugiados formada na África para facilitar a mobilidade de grupos vulneráveis.

2. Na doutrina francesa, utiliza-se o termo “étranger”, traduzido literalmente para o português como “estrangeiro”. Porém, é importante destacar que esta é uma expressão considerada discriminatória no Brasil. Por isso, ao longo dos textos, serão utilizados sinônimos, como migrantes e não nacionais.

3. DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 3-4.

4. Ainda não há uma tradução oficial deste termo para o português. Se traduzido literalmente, significaria “pessoas de preocupação”. Se levado em consideração o contexto, faria menção às pessoas que se movem entre países em condições jurídicas específicas, como refugiados, repatriados, apátridas, deslocados internos e requerentes de asilo. Ver em: UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES (UNHCR). Persons of concern to UNHCR. Disponível em: https://bit.ly/3tbc70m. Acesso em  ago. 2021.

5. DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 277-279. São normas que solucionam conflitos de jurisdição, o que significa que determina qual sistema jurídico deverá ser utilizado para solucionar o litígio.

6. DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 279-281. São normas materiais, as quais direcionam o julgador no intuito de pôr fim em um conflito.

7. DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 277-279. São normas que trabalham um conceito. Seu principal objetivo é auxiliar na aplicação da norma qualificadora.

8. DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 282. São normas domésticas que cuidam apenas dos nacionais

9. DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 282. São normas domésticas que cuidam de todos.

10. DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 286-288. São duas normas unilaterais que se complementam, gerando o mesmo efeito de normas bilaterais.

11. DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 303-307. A intertemporalidade pode acontecer por duas razões: (i) interpessoais, que diz respeito à regência da capacidade pela lei do local onde está domiciliada (e.g. modelo adotado pelo Brasil) ou pela nacionalidade (e.g. modelo adotado pela França) e; (ii) interespaciais, que tange à data de edição da norma.

12. DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 347-364. Por exemplo, casamento, direitos hereditários, bens, obrigações contratuais e obrigação por atos ilícitos.

13. Para melhor desenvolvimento do processo, é possível aplicar o instituto da Cooperação Jurídica Internacional.

14. Por exemplo, Código de Bustamante.

15. Por exemplo, Restatement of the Law of Conflict of Laws, nos Estados Unidos da América (EUA).

16. Por exemplo, Tratado de Lima e Tratados de Montividéu.

17. Por exemplo, Convenções de Haia.

18. AMERICAN SOCIETY OF INTERNATIONAL LAW (ASIL). International Law: 100 ways it shapes our lives. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3BF4TF4. Acesso em 03 set. 2021.

19. O destaque da vírgula é uma brincadeira da própria autora com o termo nós no significado de a gente, pessoas que se relacionam com esta disciplina, mas também no sentido de laços, por meio de ações que se entrelaçam no cotidiano de pessoas situadas aqui e lá, ainda que o lá esteja em outro país.

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