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O Direito Democrático como resposta à pergunta “você sabe com quem está falando?

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Certa vez, nas muitas perambulações que faço pela internet, acabei me deparando com uma videoaula do professor e filósofo Mario Sérgio Cortella, abordando a perspectiva cósmica do indivíduo, do mundo e do Universo. Na sua sabedoria, o professor trouxe para os aluno, a noção de insignificância do ser humano perante a escala e magnitude de todo o cosmos.

Da divagação acerca do planeta Terra, o filósofo abria o horizonte para o sistema solar, do sistema solar ia para a via láctea e a imensidão de planetas e estrelas que essa abarcava, por fim, ou ao menos na progressão das coisas, chegava ao infinito e além, portador de um inúmeras estrelas, planetas e galáxias.

Do espaço e do vácuo, retornou ao Sapiens e lançou aos seus alunos, em tom jocoso, um singelo ensinamento – “toda vez que alguém lhe perguntar, você sabe com quem está falando? Apenas diga, você tem tempo?”

Em que pese a insignificância do ser humano ser uma obviedade frente o vasto universo, e para a estupidez existir a sabedoria como remédio, e mais ainda a filosofia, a ideia de superioridade, de pôr o jugo e manifestar a soberba sobre o outro, em razão da classe, cor ou etnia, é ainda questão muito presente, principalmente quando se fala em Brasil e na sua respectiva história.

Os mais de 300 anos de escravidão, conjugados com o patrimonialismo que Raymundo Faoro1 nos fala em “Os donos do Poder”, foram e ainda são elementos que fazem vigorar o “você sabe com quem está falando?”. Diante de uma sociedade estratificada, fragmentada e descompassada em relação a conceitos, perspectivas e possibilidades, o indivíduo que pronuncia essa interrogação retórica, firma uma relação de poder perante o outro, que nada mais é do que um mero receptor.

Muitos são os casos que vieram a público, em que pessoas se impunham sobre outras, em virtude do cargo que ocupavam, ou do título acadêmico que detinham. Os casos da engenheira que humilhou um fiscal da prefeitura do Rio de Janeiro/RJ, e do desembargador que com estupidez reagiu a correta ação de um guarda municipal, em umas das praias de Santos/SP, desenham muito bem a sistemática do poder no Brasil.

O poder em terrae brasilis, é o poder eivado de violência, que nas palavras de Byung-Chul Han, se dá por intermédio da coerção. Por mais que estejamos amparados pelo ideal da democracia aos moldes contemporâneos, completando no corrente ano mais de 31 anos de Constituição Cidadã, o poder insiste em permanecer às margens da mediação.2

Todavia, sem querer perder de vista o otimismo, pode-se considerar o Direito como umas das saídas do discurso excludente, e construção do discurso inclusivo. O Direito enquanto instrumento mediador dos anseios da sociedade face ao Estado, e da relação entre os indivíduos, pode viabilizar um panorama ao mesmo tempo coeso e de liberdade. Para isso, faz-se necessário compreendê-lo dentro da moldura do ambiente democrático, e de igual modo como linguagem.

Essa tarefa cabe aos próprios indivíduos, visto que em tese, são partícipes ativos e reativos da discursividade, cabendo ao receptor da pergunta em comento, atuar também interlocutor, fazendo reverberar a sua significância ante o outro que se diz valer mais. Isso se dá, ou se dará, como processo, como caminhada de instrução, de alinhamento cognitivo entre os sujeitos do discurso, por isso a importância do Direito como resposta a pergunta “você sabe com quem está falando?”.

O Direito, aqui, é processo que se promove na paridade de forças, e para citar Rosemiro Pereira Leal,3 é processo instituído e validado pelos princípios autocríticos da ordem constitucional, sendo eles a isonomia, o contraditório e a ampla defesa. Tais princípios devem ser assimilados para além da lida jurídica, dos fóruns e dos tribunais, devem fazer parte da cotidianidade das interações, as quais desenham a realidade. A isonomia é a igualdade de estoque teórico e de manifestação, o contraditório a manifestação contra-argumentativa assegurada, e a ampla defesa é a possibilidade de se utilizar o arcabouço de signos e conceitos disposto para a elaboração do discurso.

Mas se depois de todo esse deslinde expositivo e argumentativo, ainda persistir a ignorância manifesta, externalizada na pergunta “você sabe com quem está falando?”, basta fazer das palavras de Cortella, as suas – “Tu és o vice-treco do sub-troço!”

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Felipe Gomes Carvalho

 

Referências

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1. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 3. ed. Porto Alegre: Revista Editora Globo, 2001.

2. HAN, Byung-Chul. O que é poder? 1º reimp., Petropólis: Editora Vozes, 2019.

3. LEAL, Rosemiro Pereira. O Paradigma Processual ante as seqüelas míticas do poder constituinte originário. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, n. 53, p. 295-316, jul./dez. 2008.

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