O Caso Americanas já foi objeto de dois artigos dessa coluna esse ano. O primeiro artigo1 discutiu um pouco sobre o que esse episódio significa para o ESG e o compliance e o segundo artigo2 tratou de alguns desdobramentos do caso, depois de passados alguns meses.
Os fatos já começaram a cair um pouco no esquecimento do imaginário popular brasileiro. Uma marca contemporânea é a velocidade das noticias, que somada ao grande volume de informações, torna efêmero e passageiro, mesmo que o assunto tome proporções gigantescas no começo.
Porém, no final de setembro de 2023 a CPMI da Americanas chegou ao seu fim, com a votação do Relatório Final pelo Congresso Nacional, que concluiu com o não indiciamento de nenhuma pessoa. Esse final melancólico levanta o questionamento sobre o qual seria a real utilidade de uma CPI, para o episódio da Americanas, que é uma possível fraude eminentemente privada.
Inicialmente, é importante situar o que é uma Comissão Parlamentar de Inquérito. As CPI’s são uma ferramenta investigativa que o Poder Legislativo dispõe para apurar possíveis ilícitos, que decorre da função fiscalizadora do Congresso Nacional. Essas comissões estão previstas no artigo 58, §3º, da Constituição da República:3
Art. 58. […]§ 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
Via de regra, as Comissões Parlamentares de Inquérito são instauradas para apurar fatos que sejam afetos ao interesse público do ente federativo a qual certa Casa Legislativa está vinculada (Município, Estado ou União). Em tese, o “fato determinado” a que o artigo da Constituição da República se refere deve ser eivado de interesse público, sendo vedada a CPI para apuração de fatos que sejam da esfera privada do sujeito.4
Essa limitação decorre da divisão de competências e atribuições entre os poderes. Um crime de roubou ao Banco do Brasil, mesmo que tenha um interesse público, visto ser um banco parcialmente estatizado, deve ser apurado pela Polícia Judiciária e não pelo Congresso Nacional. A CPI não pode invadir a competência que pertence a outro órgão.
Contudo, o que se vê é uma multiplicação de CPI’s, para a apuração de vários fatos, tais como: a CPI dos atos de 08 de janeiro; a CPI das pirâmides financeiras; a CPI das ONG’s, entre outras. Na realidade, as Comissões Parlamentares de Inquérito vêm sendo utilizadas pelo Congresso Nacional, como uma ferramenta para que o Poder Legislativo tenha algum protagonismo no combate a ilícitos de qualquer natureza, mesmo que envolvam interesses puramente privados.
No Caso Americanas, mesmo que ela seja um grande conglomerado econômico, com inúmeros empregados e clientes, a fraude contábil que levou ao rombo bilionário é um fato eminentemente privado. Não havia sentido algum o Congresso Nacional se intrometer no assunto, não sendo surpresa que o Relatório Final tenha sido completamente inconclusivo.
Segundo consta,5 o Relator concluiu que as investigações não conseguiram apontar os responsáveis pelo rombo bilionário na companhia. A pergunta que fica é: em algum momento a CPI teve chance de descobrir os responsáveis?
Uma CPI possui muitos poderes investigativos, mas não ilimitados. O rombo de 40 bilhões de reais na Americanas não é uma operação simples. Trata-se de uma elaborada manobra contábil que foi sendo perpetrada por anos, até que se acumulou de uma forma que não tinha como se esconder.
A CPI se limitou a ouvir eventuais envolvidos e especialistas, bem como a analisar documentos. Porém, essa forma de investigação não é suficiente para apontar eventuais responsáveis. Na realidade, a única forma desses fatos serem desvendados é reconstruindo as comunicações internas da empresa, em flagrante violação da privacidade dos investigados – questão que deve ser resolvida pelo Poder Judiciário, por iniciativa do Ministério Público, dentro dos limites legais e constitucionais.
Inobstante seja possível se vislumbrar uma repercussão econômica dos fatos do Caso Americanas, que transcenda interesses meramente privados, a CPI que investigou esses fatos não passou de uma tentativa frustrada de o Congresso Nacional assumir um protagonismo que não lhe pertencia na hipótese.
Como saldo da CPI ficou, além da organização de algumas provas e fatos que podem ser aproveitadas por outras autoridades investigadoraes, quatro Projetos de Lei que podem modificar um pouco a forma de tratamento de estruturas de ESG e compliance.
O primeiro Projeto de Lei objetiva ampliar a transparência e a possibilidade de responsabilização de sócios e acionistas controladores, inclusive diretores, de sociedade anônimas, bem como dos auditores independentes. O Projeto de Lei busca obrigar os controladores a revelarem quais são suas bonificações por ocupar o cargo, bem como criar estruturas mais rígidas para que esses controladores e auditores sejam responsabilizados e indenizem as empresas, em caso de fraudes que aconteçam por sua culpa ou dolo.
O segundo Projeto de Lei visa possibilitar que auditores independentes tenham acesso direto a informações de movimentações financeiras das empresas auditadas. Dessa forma, seria mais difícil à Americanas esconder as operações de risco sacado, que resultou no rombo bilionário na companhia.
O terceiro Projeto de Lei almeja a criação do tipo penal de “infidelidade patrimonial” que seria a conduta de abusar dos poderes de administração de patrimônio alheio, de forma a causar prejuízo a aquele que lhe confiou a gestão, com pena de 1 (um) a 5 (cinco) anos e multa.
O quarto Projeto de Lei tenta ampliar a figura do informante de boa-fé, para que essa figura possa auxiliar na apuração de fatos ilícitos que sejam de interesse coletivo ou difuso.
Não se tem como saber se algum desses projetos será aprovado e promulgado. Inclusive, impossível se imaginar qual será eventual texto final, isso se um dia algum desses projetos serem votados.
Porém, o que se percebe é uma ausência de foco do legislador, na realidade do problema. A questão central não é a responsabilização dos envolvidos, para isso o direito já dispõe de instrumentos de sobra no direito penal e no direito administrativo sancionador.
A prioridade do legislador deveria ser aumentar as obrigações de compliance e ESG, no sentido de que uma empresa do porte da Americanas não poderia sequer cogitar esse tipo de “erro” contábil, que agora já é fraude. Talvez, o segundo Projeto de Lei, sobre a ampliação dos poderes dos auditores externos seja o único realmente útil para se evitar esse tipo de fraude.
Ampliar o direito penal, de nada irá servir, pois esses fatos foram praticados por pessoas com alto capital financeiro, as quais o direito penal terá muita dificuldade de alcançar. Tentar ir atrás do patrimônio das pessoas físicas, para eventual reparação, além de inócuo, já existe a previsão legal no direito. Se alguma investigação chegar a conclusão que determinado gestor é responsável pela fraude, esse poderá ser responsabilizado à indenizar a companhia, pela teoria geral da reparação, já prevista no Código Civil. Não é necessária uma figura própria.
O que o Congresso Nacional deve fazer é instaurar uma Comissão Especial para o aprimoramento da regulamentação do Mercado de Capitais do Brasil, para que haja uma verdadeira evolução legislativa em torno de práticas de ESG e compliance. O que o país precisa, nesse aspecto, é de maturidade institucional, o que somente se dará com o aparelhamento legal e estrutura da CVM – Comissão de Valores Mobiliários, bem como com a criação de outras estruturas reguladoras e fiscalizadoras, para atuar no mercado de capitais.
Referências
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