Um grande processualista chamado “Enrico Redenti”

Um grande processualista chamado “Enrico Redenti”

Enrico Redenti

Entre as minhas matérias, tenho resgatado, com muito prazer, a vida e a obra de grandes juristas que contribuíram significativamente para o estudo do Direito Processual Civil. Mais do que prestar uma homenagem, a proposta está assentada na ideia de apresentar em linhas simples e resumidas as principais notas do porquê determinado pesquisador foi importante para o processo e como a sua teoria ainda vive em nosso meio.

Não retirando o brilho dos demais que falei ou que falarei nos meus materiais, mas há quatro juristas aos quais gostaria de dar ênfase para fecharmos o arco de fundação do Processo Civil Moderno: os patres. Aqui no Magis, em abril de 2023, falei sobre Piero Calamandrei; em julho de 2024, falei sobre Giuseppe Chiovenda; nesta matéria, chegou a vez de falar sobre o saudoso Enrico Redenti, professor de carreira e de vida, extremamente crítico e plural em suas contribuições teóricas1 – aqui, apenas para mencionar os quatro: na matéria do próximo mês, trarei algumas notas sobre Francesco Carnelutti.

Enrico Redenti nasceu no dia 15 de dezembro de 1883, em Parma, uma comuna localizada no norte da Itália, na região da Emilia-Romanha. Filho de Alberto Redenti e Lídia Bissoni, seu pai também foi advogado e professor de Direito – lecionou na área do Direito Civil na Universidade de Parma. Enrico Redenti perdeu o pai em 1899, quando tinha entre 17/18 anos, e sua mãe não poupou esforços nem recursos financeiros para proporcionar ao jovem acadêmico, que estava em seu primeiro ano na Faculdade de Direito da Università degli Studi di Parma, a vivência em Roma e a possibilidade de transferência do seu curso para a Università degli Studi di Roma (“La Sapienza”).2

Se pelo lado paterno Redenti havia sido influenciado a seguir a carreira jurídica, pelo lado materno, houve a possibilidade de ter contato com gigantes do Direito italiano e cravar indiscutivelmente o seu nome na história jurídica. Em La Sapienza, foi aluno de grandes juristas como Vittorio Scialoja, mentor de Giuseppe Chiovenda e grande estudioso do direito romano, Vicenzo Simoncelli, quem mais tarde viria a ser o seu orientador na sua pesquisa de conclusão Magistrati del lavoro, e Cesare Vivante, notório especialista em direito comercial e antigo amigo da família que adotou Redenti como seu auxiliar quando o jovem estava em seu terceiro ano da faculdade.3

Com a defesa da sua tese de láurea, colou grau em 1904 e imediatamente após a sua formatura começou a exercer a advocacia, contudo, sem deixar o apreço pelos seus estudos entre as estruturas da universidade: em 1905, aperfeiçoou o seu trabalho de láurea e o publicou na Rivista di Diritto Commerciale, com o título Il contratto di lavoro nella giurisprudenza dei probiviri; em 1906, seguindo a linha da sua pesquisa, publica o livro Massimario della giurisprudenza dei probiviri. Justamente nesse ano, a La Sapienza teve uma reformulação no quadro docente, incluindo a vinda de Giuseppe Chiovenda para preencher a cátedra de Direito Processual Civil, oportunizando a aproximação dos patres e o incentivo de Chiovenda a Redenti para dar seguimento na sua pesquisa em relação ao Processo Civil, sobretudo no campo da litigiosidade em situações de pluralidade4 de partes.5

Além de notório advogado, como afirmado no prelúdio desta matéria, Enrico Redenti foi um professor de carreira e de vida. É extremamente difícil dissociar Redenti da academia, afinal, durante toda a sua vida, da mocidade a velhice, participou ativamente de aulas e pesquisas. Cronologicamente, iniciou a sua vida docente em 1907 (23/24 anos) como assistente na Università di Camerino, lecionando a disciplina de procedura civile e ordinamento giudiziario. No ano seguinte, além da sua promoção a professor extraordinário de Processo Civil e de começar a ministrar as aulas de direito comercial, conquistou a livre-docência na Università di Roma.

Em 1909, presta e vence o concurso para catedrático de Direito Processual Civil da Università degli Studi di Perugia e logo na sequência, em 1910, concorre às cátedras das Università degli Studi di Messina e Università degli Studi di Parma, vencendo ambos os concursos e optando pelo seu ingresso, em 1911, na Universidade de Parma, instituição na qual se tornou professor ordinário em 1915.

No ano seguinte, é convidado a ocupar a cátedra vaga da Università di Bologna, porém, iniciando o magistério apenas em 1919 diante da interrupção de sua carreira em razão de sua participação na Primeira Guerra Mundial. Ainda com convites de Nápoles e de Roma, preferiu ficar em Bolonha até a sua aposentadoria, não o impedindo de exercer a docência em direito comercial, de forma paralela, na Università Bocconi, em Milão.

Além de todos os êxitos acadêmicos, exercendo concomitantemente a advocacia, manteve a sua produção científica ativa (adiante falarei sobre) e, em termos de mérito, foi membro e presidente da importante Associazione italiana fra gli studiosi del Processo Civile (AISPC), foi cofundador da Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, foi membro da Accademia Nazionale dei Lincei e participou ativamente de todas as comissões que precederam a promulgação do Código de Processo Civil italiano de “1940”6.

Enrico Redenti faleceu em 1º de janeiro de 1963, em Bolonha. Entre as homenagens recebidas, a Prefeitura de Bolonha dedicou o seu nome para uma via7 , isso é, uma das ruas da cidade, localizada ao lado do Giardini Margherita Bologna, em zona nobre da cidade, também, em 1966, é instituída a Fondazione “Enrico Redenti”, a qual anualmente confere um generoso prêmio em dinheiro à melhor monografia italiana de Direito Processual Civil. Além de inúmeros discípulos e admiradores (Salvatore Satta e Tito Carnacini, por exemplo), deixou inúmeros contributos teóricos atemporais, muitos que merecem (e devem) ser relidos até a atualidade.8 Sobre este ponto, falo agora em caminho de encerrar a matéria.

Durante toda a sua vida, Redenti publicou quase um centenário de estudos (entre opiniões, artigos e livros). É curioso observar que, embora a veia pulsante de Enrico Redenti pelo Direito Processual Civil, os seus estudos não estavam restritos à dogmática do processo, quando também encarou diversos temas, em metodologias diversificadas, sobretudo em viés empírico, com a inquietação de genuinamente oferecer respostas a problemas que observava no direito italiano.

Além dos estudos já mencionados durante a matéria, cito exemplificativamente alguns estudos relativamente interessantes por ele desenvolvidos no direito processual: (1) Il giudizio civile con pluralità di parti, publicado pela Giuffrè em 1960 (originalmente publicado pela SEL, em 1911), (2) Intorno al concetto di giurisdizione, publicado pela editora Jovene, em 1916, na obra “Studi giuridici in onore di Vincenzo Simoncelli”; (3) Corso di procedura civile e ordinamento giudiziario, publicado pela La Grafolito em 1932; (4) Profili pratici del diritto processuale civile, publicado pela Giuffrè em 1938; (5) L’umanità nel nuovo processo civile, publicado na Rivista di diritto processuale civile em 1941; (6) Problemi di competenza in Cassazione, publicado na Rivista di diritto processuale civile em 1943; (7) e, evidentemente o seu mais significativo contributo o Diritto Processuale Civile, pela Giuffrè, em três volumes, entre os anos de 1947-1954.

É difícil apontar um “tema central” ou de maior apreço por Redenti. Há defensores no sentido de que seria a preocupação com a pluralidade de partes no processo, outros que na verdade a sua preocupação maior era fora do Processo Civil e mais relacionada com o direito comercial etc. Entretanto, acredito que dada extensão de sua produção, o seu empenho em analisar cirurgicamente gamas de temas sem segmentá-los, e com visões, muitas vezes, antagônicas às de seus pares, sem esquecer da sua grande contribuição para o sentido de “causa”9, sua preocupação maior estava na aplicação e qualificação de toda a ciência jurídica, limitando-se a contribuir (como naturalmente acontece com cada pesquisador) nas áreas que mais dominava.10

Esse caráter empírico e crítico é sentido em diversos institutos por ele explorados e magistralmente dissertados, colocando-se por muitas vezes em posição de antagonismo aos seus pares, tornando-o um jurista singular. Um exemplo dessa sua percepção é acerca da jurisdição – brevemente abordado no meu livro11 que está em pré-venda e logo será oficialmente lançado. Diversamente do que defendiam grandes nomes como Lodovico Mortara ou Giuseppe Chiovenda, para ele, a jurisdição surge (e apenas) quando o Estado aplica a punição pelo descumprimento da norma jurídica legislativamente pré-estabelecida.12

Discordo daqueles que subestimam Enrico Redenti; mais do que um grande jurista, foi um grande professor e pesquisador, tem cravado o seu posto entre os quatro patres do Processo Civil Moderno e merece todos os louros de ser reconhecido como um grande processualista.13

Deixo um abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas. Vejo vocês no próximo mês.

 

Referências

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1. CARNACINI, Tito. La vita e le opere di Enrico Redenti: Discorso commemorativo letto nell’aula magna dell’Università di Bologna il 25-1-1964. Milano: Giuffrè, 1964.

2. TUCCI, José Rogério Cruz e. Enrico Redenti: vida e obra: contribuição para o estudo do processo civil. São Paulo: Migalhas, 2019.

3. FAZZALARI, Elio. Enrico Redenti nella cultura giuridica italiana. Revista de Direito Processual Civil, v. 3, n. 5, p. 85-99, 1962.

4. CIPRIANI, Franco. Alla scoperta di Enrico Redenti. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, v. 60, n. 1, p. 75-125, 2006.

5. TUCCI, José Rogério Cruz e. Enrico Redenti: vida e obra: contribuição para o estudo do processo civil. São Paulo: Migalhas, 2019.

6. Uma observação extremamente importante para aqueles que não conhecem ou pouco conhecem sobre o âmbito legislativo processual italiano. O Código de Processo Civil italiano, ainda vigente (embora reeditado por legislações especiais ao longo dos anos), foi promulgado em 1940, mas entrou em vigência apenas em 1942. Por isso, é normal encontrar referências a ele como Código de 1940 ou Código de 1942. É o mesmo Código e as duas formas estão corretas, variando apenas a opção daquele que o menciona (ou seja, 1940 se se opta pela data da promulgação ou por 1942 se se opta pela data de vigência). Particularmente, refiro-me a ele como Código de 1940 – a lógica do CPC/2015 (e não CPC/2016, por exemplo).

7. Aos que tiverem curiosidade, pesquisem por “Via Enrico Redenti, Bologna (BO), Italia – 40137”.

8. VELLANI, Carlo. Enrico Redenti. Treccani, v. 86, 2016. Disponível em: <https://bit.ly/4maY2Ly>. Acesso em: 9 maio 2025.

9. FAVERO, Gustavo Henrichs. Breve história semântica de causa em juízo: A contemporaneidade do pensamento de Enrico Redenti. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 23, n. 2, p. 539-564, 2022.

10. CIPRIANI, Franco. Per la storia del pensiero giuridico moderno: Scritti in onore dei patres. Milano: Giuffrè, 2006.

11. MÖLLER, Guilherme Christen. Processo, jurisdição e sistema de justiça multiportas: entre o Brasil e a Itália. Londrina: Thoth, 2025.

12. REDENTI, Erico. Scritti e discorsi giuridici di um mezzo secolo. Milano: Giuffrè, 1962. v. 1: Intorno al diritto processuale.

13. CARNACINI, Tito. La vita e le opere di Enrico Redenti: Discorso commemorativo letto nell’aula magna dell’Università di Bologna il 25-1-1964. Milano: Giuffrè, 1964.

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